sábado, 26 de outubro de 2013

A comoção popular não pode ensejar a prisão preventiva de nenhum acusado

Infelizmente, ninguém está imune a agir como a médica KATIA VARGAS (informações sobre o fato no link abaixo), mormente em face da violência que atinge o trânsito E DOS ALTOS NÍVEIS DE ESTRESSE que acometem principalmente as pessoas que vivem nas grandes cidades. No que tange à prisão da médica, acho-a desnecessária, pois a meu ver não estão presentes NENHUM dos requisitos autorizadores do art.312 do CPP. 
Ora, a comoção popular, como é sabido, não é motivo (ou pelo menos não deveria ser) apto a ensejar a prisão de qualquer pessoa, vez que é princípio constitucional que ninguém será levado à prisão ou nela mantida caso seja possível a concessão da liberdade provisória (art.5º, LXVI, CF/88), tudo em respeito ao princípio da presunção de inocência (art.5º, LVII, CF/88). 
Ocorre que, infelizmente, não raras são as vezes que a comoção popular é o motivo determinante para a prisão preventiva (cautelar) de algum acusado aqui no Brasil, como o caso do goleiro Bruno (Caso Eliza Samúdio), tornando-se verdadeira antecipação de pena, o que é terminantemente proibido pela garantia constitucional da presunção de inocência suprarreferida, a qual somente se desfaz com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Caso a médica Katia Vargas tenha cometido algum crime, então que pague por ele, mas devendo responder ao processo em liberdade (se não houver a demonstração concreta da existência de algum dos requisitos do art.312 do CPP).
A SIMPLES OCORRÊNCIA DE UM FATO DELITUOSO A TÍTULO DE DOLO E A COMOÇÃO POPULAR, FRISE-SE, CRIADA POR UMA MÍDIA SENSACIONALISTA, NÃO JUSTIFICAM A PRISÃO CAUTELAR DE NINGUÉM
Infelizmente, esta semana o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA negou o pedido liminar em HABEAS CORPUS requerido pela defesa da MÉDICA, mantendo-a presa até o julgamento definitivo do referido HC.
Esperemos os próximos capítulos desta novela...



*Disponível em: http://atarde.uol.com.br/materias/1540386-delegada-diz-que-medica-perseguiu-irmaos-ate-colisao

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Caso Dorothy Stang: Erros técnicos-jurídicos na sentença que condenou VITALMIRO BASTOS DE MOURA


Ontem, no dia 19 de setembro de 2013, foi concluído o julgamento do mandante do homicídio praticado em 2005 contra a missionária Dorothy Stang, tendo VITALMIRO BASTOS DE MOURA sido condenado pela 2ª Vara do Tribunal do Júri de Belém/PA à pena de 30 (trinta) anos de reclusão (link abaixo).
Ocorre que, da análise cuidadosa da sentença condenatória, verifica-se que a mesma possui erros técnicos-jurídicos, os quais acabaram por acarretar uma reprimenda mais dura do que a que seria devida, considerando-se a fundamentação esposada.
Insta registrar, que o Conselho de Sentença reconheceu a presença de 2 (duas) qualificadoras, quais sejam, a da promessa de recompensa (art.121, §2º, I, Código Penal) e a que dificultou ou impossibilitou a defesa da vítima (art.121, §2º, IV, CP). Outrossim, fora reconhecida ainda a agravante do art.61, II, "h", do CP, ante a vítima possuir mais de 60 (sessenta) anos.
Passemos a analisar a fundamentação do édito condenatório. 
Inicialmente, calha destacar, que das 6 (seis) circunstâncias judiciais consideradas desfavoráveis ao réu, 3 (três) delas foram valoradas (negativamente) indevidamente, senão vejamos.
A primeira delas foi a conduta social do réu. Segundo trecho da sentença, "CONDUTA SOCIAL e PERSONALIDADE, entendo voltadas para a violência, além de perversa e covarde, demonstrando ser o corréu pessoa inadaptada ao convívio social por não vicejarem no seu espírito sentimentos de amor, amizade, generosidade e solidariedade para com o semelhante, colocando acima de qualquer valor relevante suas pretensões patrimoniais".
Da análise do referido trecho, vê-se claramente que foram "misturados" os conceitos de conduta social (do réu) e personalidade, ambas circunstâncias judiciais previstas no art.59 do CP. Da fundamentação exposta acima, a mesma serviria apenas para justificar o recrudescimento da personalidade, jamais a da conduta social.
Isto porque, a conduta social se refere ao sentimento que a comunidade tem sobre o réu, como por exemplo, se é bem visto em sua comunidade, considerado amigo pela vizinhança, um bom pai, se é querido no trabalho, etc. A fundamentação usada acima, assim, nada tem a ver com conceito de conduta social aceita pacificamente pela doutrina e jurisprudência pátrias. Neste sentido, ao discorrer sobre a conduta social, GUILHERME DE SOUZA NUCCI ensina que:

É o papel do réu na comunidade, inserido no contexto da família, do trabalho, da escola, da vizinhança, dentre outros, motivo pelo qual além de simplesmente considerar o fator conduta social preferimos incluir a expressão inserção social. Não somente a conduta antecedente do agente em seus vários setores de relacionamento, mas sobretudo o ambiente no qual está inserido são capazes de determinar a justa medida da reprovação que seu ato criminoso possa merecer. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.200/201). (negritei)

Assim, o aumento decorrente pela valoração negativa da conduta social constitui-se em deslize técnico-jurídico.
Outro deslize ocorrido no processo dosimétrico foi valorar negativamente as circunstâncias do crime, colhe-se da sentença o seguinte: "(...) As CIRCUNSTÂNCIAS desfavoráveis ao mesmo, e as CONSEQUÊNCIAS do crime entendo graves, pois foi ceifada a vida de um ser humano". - sublinhei.
Ora, da análise do trecho referente às circunstâncias, observa-se claramente que não há nenhuma fundamentação concreta, havendo somente a afirmativa de que as circunstâncias são negativas, mas, frise-se, sem declinar nenhum fundamento apto a justificar o recrudescimento da sanção penal. Sobre o tema, RICARDO SCHMITT afirma que: "A sentença que não fundamenta sua valoração das circunstâncias do crime ou que não indica os elementos concretos que formaram o convencimento do juiz quanto a essa valoração padece de nulidade". (Sentença Penal Condenatória. 7ª Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p.138).

Assim, no caso da valoração negativa das circunstâncias do crime o erro técnico-jurídico se deu porque não houve fundamentação concreta no édito condenatório. Pergunta-se. Poderia ter sido utilizada corretamente? Poderia, mas não o foi porque não houve fundamentação em dados concretos do processo.
O outro deslize foi considerar a morte da vítima como consequência desfavorável ao réu num crime de homicídio. Ora, a morte da vítima é consequência natural no delito de homicídio, logo, não pode ser valorada pelo juiz no momento da fixação da pena, sob pena de odiável dupla apenação (bis in idem), vedado em nosso ordenamento jurídico. Nessa senda, GUILHERME DE SOUZA NUCCI, leciona:

O mal causado pelo crime, que transcende o resultado típico, é a consequência a ser considerada para a fixação da pena. É lógico que num homicídio, por exemplo, a consequência natural é a morte de alguém e, em decorrência disso, uma pessoa pode ficar viúva ou órfã. Diferentemente, um indivíduo que assassina a esposa na frente dos filhos menores, causando-lhes um trauma sem precedentes, precisa ser mais severamente apenado, pois trata-se de uma consequência não natural do delito. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.226). - negritei

Como se sabe, o bem jurídico tutelado no delito de homicídio é a vida do indivíduo, razão pela qual, ante a gravidade da violação de tal bem jurídico e, assim, a causação da morte (decorrência natural no crime de homicídio) de alguém, o legislador fixou para o homicídio uma das maiores penas para os infratores da lei penal. Dissertando sobre a função limitadora do bem jurídico no que se refere à aplicação da pena, o insigne professor de Direito Penal da USP, DAVID TEIXEIRA DE AZEVEDO ensina que:

É defeso ao magistrado elevar a sanção, no trabalho de motivação e aplicação da pena, em razão da virulência do ataque ou da gravidade de lesão ao bem jurídico, tomando circunstâncias já consideradas no tipo incriminador. Se assim o fizer, incidirá no bis in idem, repetindo para a gravidade do crime a modalidade ou o grau de intensidade da ofensa, ambos já considerados e avaliados pelo legislador ao fixar a quantidade da pena mínima. (Dosimetria da Pena: causas de aumento e diminuição. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.42).

Ora, considerar a morte da vítima no crime de homicídio como consequência desfavorável é claro bis in idem, pois o legislador, ante as graves consequências deste crime (morte de alguém), no primeiro momento de individualizar a pena (fase legislativa), fixou para este delito uma das maiores reprimendas, basta ver o homicídio qualificado (art.121, §2º, I a V, do CP), no qual a pena mínima é de 12 (doze) anos e o máximo é de 30 (trinta) anos de reclusão.
Assim, suprimindo da condenação de VITALMIRO BASTOS estas 3 (três) circunstâncias judiciais (leia-se: conduta social, circunstâncias e consequências do crime), tem-se que a pena-base deveria ter sido fixada em 18 (dezoito) anos  e 07 (sete) meses de reclusão.
Outrossim, na 2ª fase do processo dosimétrico da pena, ante a incidência da agravante constante do art.61, II, "h" do CP (vítima maior de 60 anos), com um aumento do ideal imaginário de 1/6 (um sexto), a pena provisória chegaria a 21 (vinte e um) anos e 07 (sete) meses de reclusão.
Ademais, há ainda outra agravante a ser aplicada. Explica-se, como é cediço, diante da existência de mais de 1 (uma) qualificadora - in casu, foram reconhecidas 2 (duas) pelo Conselho de Sentença -, uma serve para qualificar e a outra para usar como circunstância agravante, desde que esteja prevista no rol do art.61 ou art.62 do CP. É justamente o caso da qualificadora do art.121, §2º, IV, CP, que possui uma agravante correspondente no art.61, II, "c", do CP.
Se não houvesse previsão da qualificadora como agravante, ela deveria ser analisada na análise das circunstâncias judiciais, notadamente na análise das circunstâncias, tendo em vista que todas as circunstâncias que envolvem o fato delituoso devem ser consideradas para fins de fixação da pena.
Assim, aplicando-se esta segunda agravante (1/6), a pena definitiva de VITALMIRO BASTOS chegaria a 24 anos e 07 (sete) meses de reclusão (ante a ausência de causas de aumento ou diminuição da pena), em total respeito aos ditames do Sistema Trifásico de aplicação da pena e ao princípio constitucional da individualização da pena (art.5º, XLVI, Carta Política de 1988).









A pena mínima do crime de estupro deveria ser de pelo menos 8 (oito) anos de reclusão


Infelizmente, ao contrário do que muita gente pensa, quem comete o gravíssimo crime de estupro - frise-se, em sua forma simples: art.213 do Código Penal: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - Reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos" - costuma (isto é, na maioria das vezes) ter sua pena definitiva fixada no mínimo legal, qual seja, 6 (seis) anos de reclusão.
Para quem conhece nosso Sistema de Aplicação da Pena, constante no art.68 c/c com o art.59, todos do Código Penal brasileiro, sabe que grande parte (diz-se em grande parte, pois, em homenagem ao princípio da individualização da pena (art.5º, XLVI, CF/88), a pena de cada caso vai depender das circunstâncias objetivas e subjetivas de cada criminoso e dos crimes praticados) dos estupradores acaba por ter sua pena fixada no montante mínimo, ou seja, de 6 (seis) anos.
Tal constatação é relevante e possui grave consequência jurídica, frise-se, não sabido pela maioria da população brasileira, qual seja, devido a fixação da pena em seu patamar mínimo (seis anos), o condenado NÃO IRÁ para o regime fechado de cumprimento da pena, mas para o regime semi-aberto, tendo em vista que sua pena fora fixada em quantidade inferior a 8 (oito) anos de reclusão, nos termos do art.33, §2º, do Código Penal: "As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: (...) b) o condenado não reincidente cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;"
Assim, ao invés do condenado por estupro ir cumprir sua pena no presídio (regime fechado), ele irá para o regime semi-aberto, onde cumprirá a pena numa colônia penal (art.35, §1º, CP), sendo possível ainda exercer trabalho externo e ainda, a participação em cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau e superior fora da referida colônia penal (art.35, §2º, CP).
Essa é a regra. A exceção fica por conta do condenado reincidente, pois, mesmo que sua pena tenho sido fixada em 6 (seis) anos, o que vale também no caso do estupro, ele deverá iniciar o cumprimento da sanção corporal em regime fechado. Reincidente é o indivíduo que vem a praticar novo crime antes de passar pelo menos 5 (cinco) anos após o trânsito em julgado que o condenou anteriormente, seja no Brasil ou no estrangeiro, pela prática de algum outro delito, conforme se depreende da leitura conjunta dos arts.63 e 64 do Código Penal.
Desta forma, é preciso deixar claro, que em regra (desde que o condenado não seja reincidente), o condenado por estupro não irá iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado (no presídio), isto porque, o juiz, ao fixar a pena analisando as circunstâncias constantes do art.59 do Código Penal (bem como as demais fases) - atente-se, partindo sempre do montante mínimo (seis anos) -, em grande parte dos casos não conseguirá aumentar a pena até 8 (oito) anos ou mais, hipótese em que o condenado por estupro começaria a cumprir sua pena em regime fechado.
A nosso ver, o problema não está no Sistema da Fixação da Pena, mas sim na ausência de proporcionalidade da pena mínima atribuída ao crime de estupro, qual seja, de apenas 6 (seis) anos de reclusão.
Como é cediço, o delito do estupro é uma conduta socialmente repugnante e considerada gravíssima por toda a sociedade brasileira, sendo um dos crimes que mais chocam por sua virulência, chegando ao ponto dos demais presidiários (e/ou criminosos) não aceitarem de forma nenhuma quem pratica o referido crime.
Por outro lado, não podemos esquecer que o delito de estupro - ante a enorme gravidade de suas consequências no seio da sociedade e principalmente para as vítimas, as quais em sua grande maioria passam a conviver com problemas psicológicos e de relacionamento - é considerado crime hediondo, nos termos do art.1º, inciso V, da Lei nº 8.072/1990.
Assim, temos que a pena mínima do crime de estupro não é proporcional à enorme gravidade da referida conduta delituosa. Como se sabe, a pena a ser atribuída pelo legislador para determinada conduta considerada criminosa deve guardar proporcionalidade com a conduta violadora da lei penal incriminadora, o que, a nosso ver, não acontece com pena mínima do delito de estupro em sua forma simples. Sobre a proporcionalidade, LUIZ REGIS PRADO ensina que:

O princípio da proporcionalidade (poena debet commensurari delicto), em sentido estrito, exige um liame axiológico e, portanto, graduável, entre o fato praticado e a cominação legal/consequência jurídica, ficando evidente a proibição de qualquer excesso. [...]
(...)
Em resumo, a pena deve estar  proporcionada ou adequada à intensidade ou magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito e a medida de segurança à periculosidade criminal do agente. (Curso de direito penal brasileiro - Parte Geral. 10ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.151).

Na mesma senda, sobre a proporcionalidade, FERNANDO CAPEZ leciona que, in verbis:

Além disso, a pena, isto é, a resposta punitiva estatal ao crime, deve guardar proporção com o mal infligido ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividade distintas, ou para infrações dolosas e culposas. (Curso de Direito Penal - Parte Geral. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.40). - negritei

Outro não é o entendimento de GUILHERME DE SOUZA NUCCI:

Ao elaborar tipos penais incriminadores deve o legislador inspirar-se na proporcionalidade, sob pena de incidir em deslize grave, com arranhões inevitáveis a preceitos constitucionais. Não teria sentido, a título de exemplo, prever pena de multa a um homicídio, como também não se vê como razoável a aplicação de pena privativa de liberdade elevada a quem, com a utilização de aparelho sonoro em elevado volume, perturba o sossego de seu vizinho. [...]
(...)
A tarefa do criador da norma penal é, baseando-se na proporcionalidade das sanções penais destinadas aos crimes praticados, estipular as penas. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.40)

Desta forma, temos que a fixação da pena do delito de estupro (na sua forma simples, isto é, a do caput do art.213 do CP) pelo legislador brasileiro à margem mínima de 6 (seis) anos viola o princípio constitucional da proporcionalidade. A nosso ver, a pena mínima deveria ser de pelo menos 8 (oito) anos, tal como já é previsto para o estupro qualificado (art.213, §§ e 1º e 2º do Código Penal) e para o Estupro de Vulnerável (art.217-A do CP), o que em regra acarretaria aos condenados por estupro começarem a cumprir a pena em regime fechado, nos termos do art.33, §2º, "a", do Código Penal.







segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A venda de CDs e DVDs "piratas" não deve continuar a ser considerada crime


"Passeando" pelo facebook neste domingo (08 de setembro de 2013), li um post (link abaixo) que me chamou bastante a atenção, o qual tinha o seguinte título: "Venda de CDs e DVDs piratas não é infração penal".
Como é sabido, a comercialização de produtos "piratas" (falsificados) é considerada crime pela legislação brasileira, conforme teor do §2º do art.184 do Código Penal: "Na mesma pena do §1º (Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa) incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente".
De acordo com o referido post, a justiça de 1º Grau do Estado de Goiás absolveu uma mulher denunciada por expor à venda cerca de 727 (setecentos e vinte e sete) CDs e DVDs, todos falsificados.
Segundo a peça acusatória, no dia 04 de fevereiro de 2010, a denunciada P. M. S. estava com a citada quantidade de produtos falsificados expostos à venda na cidade de Goiânia, sendo que, por volta das 18:40 hs, a mesma tentou fugir após perceber a presença da polícia, ocasião em que fora presa em flagrante por violação ao art.184, §2º do CP. Todos os produtos falsificados foram apreendidos.
Realizada a instrução processual, o Ministério Público requereu a condenação nos termos da denúncia, ao passo que a defesa pediu a absolvição pelo reconhecimento do princípio da insignificância.
Ocorre que, o juiz sentenciante, ADEGMAR JOSÉ FERREIRA, no dia 30 de agosto de 2013, prolatou uma sentença absolutória, haja vista o reconhecimento do princípio da adequação social. Calha trazer à baila trecho de referido decisum, in verbis:

Diante deste contexto, não pairam dúvidas de que a acusada efetivamente perpetrou o fato que lhe é imputado na exordial acusatória.
Contudo, ainda será preciso analisar a adequação típica deste agir, isto é, se a comercialização de cópias não autorizadas de CDs/DVDs caracteriza infração penal, mormente considerada a sua nítida aceitação social.
(...)
A teoria da adequação social foi concebida pelo grande jurista e filósofo alemão HANS WELZEL, que preconiza a ideia de que, apesar de uma conduta se subsumir ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, isto é, quando estiver de acordo com a ordem social. É possível afirmar que, em razão da sua aplicação, não são consideradas típicas as condutas praticadas dentro do limite de ordem social normal da vida, haja vista serem compreendidas como toleráveis pela própria sociedade.
(...)
Basta caminhar pelo centro de Goiânia para se encontrar milhares de pessoas comprando CDs e DVDs falsificados ('pirateados', como são conhecidos popularmente) com toda tranquilidade, uma vez que não encaram a prática de maneira criminosa ou mesmo imoral. Aliás, para boa parte da população esta é uma das únicas formas de se adquirir produtos que visem a formação de seu capital cultural. É sabido que existem grandes gravadoras e produtoras que controlam a criação, produção e circulação dos produtos de entretenimento, ademais da altíssima taxa tributária, impedindo que as parcelas mais pobres tenham acesso à produção artística e cultural.

O mais absurdo é que camadas mais elevadas da sociedade patrocinam o suposto crime em tela, diuturnamente, através da 'internet', 'ipods', 'iphones' e outros. Carros luxuosos dotados de equipamentos habilitados à reprodução de músicas em formato digital ('MP3'), as quais, são 'baixadas' de 'sites' da 'internet', sem qualquer valor adimplido aos detentores dos direitos autorais, circulam livremente pela cidade. Crianças e adolescentes de classes mais abastadas, circulam com seus 'Ipods', 'Ipads', 'Iphones' e aparelhos outros, ouvindo canções que foram objeto de 'download' nas mesmas circunstâncias.

Mas contra tais pessoas, existe algum tipo de coerção estatal? Há nota da expedição de mandado de busca e apreensão a residências de pessoas que realizam gravação de mídias deste gênero, em violação ao art. 184, 'caput', do CP? Algum condutor de veículo, que tenha sido alvo de abordagem de rotina pela atividade policial, flagrado fazendo uso de mídia 'pirateada', foi criminalmente autuado na forma do art. 184, 'caput', do CP?

Jamais. Pois, o fato é que em sua grande maioria, a reprimenda penal é direcionada e investida contra as classes baixas. Desta forma que as condutas imorais típicas das classes despossuídas são tipificadas nos estatutos penais, como o furto, roubo, falsificação e etc.. Enquanto as práticas imorais típicas das classes possuidoras, não são tipificadas, ou quando o são tem penas brandas, como os crimes tributários ou contra o meio ambiente, e amiúde, são precisamente estes os crimes em que a afetação social é maior, tendo em vista que toda a população é prejudicada. Para ficar em um exemplo, temos o jogo do bicho, que notoriamente leva à ruína, sem qualquer controle, milhares de pessoas todos os anos, mas que não passa de uma contravenção penal.

Logo, precisamente aquelas que não conseguiram, ou muitas vezes foram impedidas, de se encaixar no mercado de trabalho formal e buscaram sustento no comércio informal, acabam sendo reprimidas pela legislação penal simbólica e voltada, exclusivamente, à tutela de grupos econômicos específicos, como forma de controle social de determinadas parcelas sociais. LUIZ FLAVIO GOMES e ANTONIO GARCIA-PABLOS DE MOLINA, com muita propriedade, lecionam sobre o tema:

O controle social é altamente discriminatório e seletivo. Enquanto os estudos empíricos demonstram o caráter majoritário e ubíquo do comportamento delitivo, a etiqueta do delinquente, sem embargo, manifesta-se como um fator negativo que os mecanismos de controle social repartem com o mesmo critério de distribuição dos bens positivos (fama, riqueza, poder etc.): levando em conta o status e o papel das pessoas. De modo que as 'chances' ou 'riscos' de ser etiquetado como delinquente não dependem tanto da conduta executada (delito), senão da posição do indivíduo na pirâmide social (status). Os processos de criminalização, ademais, vinculam-se ao estímulo da visibilidade diferencial da conduta desviada em uma sociedade concreta, isto é, guiam-se mais pela sintomatologia do conflito que pela etiologia do mesmo (visibilidade versus latência). [GARCÍA-Pablos de Molina, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.]
Atualmente, é normal estarmos em bares, restaurantes, feiras, na rua, e nos depararmos com indivíduos vendendo objetos pirateados - e não é segredo para ninguém a origem falsificada de tais produtos. A reação da sociedade não é de rechaço para com essa ação, pelo contrário, é aceito com normalidade. 
(...)

Além da reação popular de não repudiar a ação, vemos também a manifestação de diversos artistas que reconhecem que a pirataria serve como propaganda de seus trabalhos. Exemplo disso é o que afirmou o ilustre escritor internacionalmente renomado, Paulo Coelho, em seu blog paulocoelhoblog.com, em 2012 (original em inglês, tradução em http://blogs.estadao.com.br/link/paulo-coelho-defende-pirataria-e-ataca-sopa/):

(...)

Esta não é, de nenhuma maneira, uma prática rechaçada pela sociedade de modo expresso, notório, tendente a justificar a contundente intervenção penal.

Assim sendo, transparece que a prática ilícita cometida pelo denunciado seria passível de contenção mais razoável e proporcional com a só intervenção do Direito Administrativo, quem sabe com mera apreensão dos produtos contrafeitos e imposição de sanção pecuniária. E isto para não entrar nas raízes que fazem com que tais práticas existam na sociedade e tenham, de alguma forma, de serem punidas.

Finalmente, não há como conceber a imposição do cárcere a uma conduta que encontra tolerância na quase totalidade da sociedade.

A nosso ver, a referida absolvição foi assaz correta, a partir de uma leitura constitucional do Direito Penal. De fato, é notório que a Constituição Federal de 1988 é manifestamente garantista, sendo que um dos mais importantes princípios penais é o que diz que o direito penal deve ser a ultima ratio a ser usada contra os cidadãos, devendo ser usado somente quando os demais ramos do ordenamento jurídico se mostrarem ineficazes.

Por outro lado, há que enfatizar que somente as condutas tidas como inaceitáveis pela sociedade é que podem ser tipificadas como delituosas, isto é, rotuladas como "criminosas" e, assim, passíveis de punição corporal.

Ocorre que, a venda de produtos "piratas" (CDs e DVDs) em nosso país é um fato amplamente aceito por nossa sociedade como "normal", aceitável, natural. Ou seja, tal conduta não pode continuar a ser rotulada como criminosa, tendo em vista que o corpo social não a considera como tal. Nesse ponto, o penalista Fernando Capez (2012, p.35) leciona que:

(...) Adequação Social: todo comportamento que, a despeito de ser considerado criminoso pela lei, não afrontar o sentimento social de justiça (aquilo que a sociedade tem por justo) não pode ser considerado criminoso.
Para essa teoria, o Direito Penal somente tipifica condutas que tenham relevância social. O tipo penal pressupõe uma atividade seletiva de comportamento, escolhendo somente aqueles que sejam contrários e nocivos ao interesse público, para serem erigidos à categoria de infrações penais; por conseguinte, as condutas aceitas socialmente e consideradas normais não podem sofrer este tipo de valoração negativa, sob pena de a lei incriminadora padecer do vício de inconstitucionalidade. (Curso de Direito Penal, volume 1, Parte Geral. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012).

Assim, considerando que tanto a compra como a venda de CDs e DVDs "piratas" no Brasil é um fato considerado normal pela sociedade, não há que se falar em crime, em homenagem ao princípio da adequação social.

Nem me venha dizer que o costume não pode revogar a lei - argumento bastante usado pelos defensores da criminalização da referida conduta -, pois o que dizer da conduta dos pais que furam as orelhas dos bebês de sexo feminino para futuramente colocar brincos? Como se sabe, a ofensa a integridade física (inclusive a de furar a orelha) de qualquer pessoa consubstancia o crime de lesão corporal (art.129 do Código Penal: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem), passível de pena de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

Não há dúvida de que a não criminalização da conduta dos pais se dá justamente porque tal conduta é considerada normal, justa, aceitável por nossa sociedade, razão pela qual a ofensa à integridade física (furo na orelha) de um bebê recém-nascido não é rotulada de criminosa, não obstante sua subsunção ao citado art.129 do Código Penal (Lesão corporal). Ademais, não esqueçamos que ainda há uma agravante a ser reconhecida no referido caso, isto é, a agravante de quando a vítima do delito é criança, a teor do art.61, II, "h", ocasião em que na segunda fase da aplicação da pena deveria haver um aumento de 1/6 (um sexto) sobre a pena-base.

Contudo, mesmo diante do referido cenário, isto é, da existência do delito de lesão corporal (art.129 do CP) e de uma agravante (art.61, II, "h", do CP), "até as pedras da rua sabem" que lesionar a orelha dos bebês de sexo feminino para futuramente serem colocados brincos não é uma conduta rotulada pela sociedade como criminosa.

Destarte, vê-se claramente que a venda de CDs e DVDs "pirateados" no Brasil não deve continuar a sofrer os rigores do Direito Penal em reconhecimento ao princípio da adequação social. Desta forma, parabéns ao magistrado do Estado de Goiás pela leitura constitucional aplicada ao caso.

Infelizmente, cabe registrar, que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (entendimento firmado a partir do julgamento do REsp 1.193.196-MG, DJe 04.12.2012) e do Supremo Tribunal Federal é no sentido da existência sim do crime de violação aos direitos autorais (art.184, §2º do CP), sendo que um dos frágeis argumentos é o de que o costume não pode revogar a lei, argumento este já rebatido linhas acima.

Desta forma, assaz correta se mostra a atipicidade da conduta dos vendedores de CDs e DVDs "piratas", cabendo-nos torcer para que os referidos Tribunais Superiores mudem seus entendimentos sobre a matéria, em homenagem ao princípio da adequação social.

Infelizmente, hoje, dia 29/10/2013 (terça-feira), o STJ expediu a Súmula nº 502* (2ºlink abaixo), afirmando a criminalização da venda de produtos piratas (CD's e DVD's), in verbis: "Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art.184, §2º, do CP, a conduta de expor à venda CD's e DVD's piratas". 



quarta-feira, 5 de junho de 2013

CASO ELOÁ: TJ SP reduz a pena de Lindemberg Alves para 39 anos e 3 meses de reclusão

Nesta terça, dia 04 de junho de 2013, confirmando - e acatando - diversas de nossas criticas elencadas no texto "ERROS NA SENTENÇA QUE CONDENOU LINDEMBERG ALVES* (link abaixo)", de 19 de fevereiro de 2012, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo redimensionou a altíssima (como diria o agregado José Dias da obra machadiana ao abusar dos superlativos) pena de 98 (noventa e oito anos) e 08 (oito meses) imposta a Lindemberg Alves em fevereiro de 2012 para *39 (trinta e nove) anos e 03 (três) meses de reclusão.
De fato, o TJSP acolheu a nossa tese de que existiam vários erros técnicos-jurídicos na supracitada sentença condenatória (link abaixo). Nesta esteira, confira os seguintes trechos do acórdão, in verbis:

Por outro lado, no que tange a aplicação da pena, cuja competência era da Juíza Presidente do Júri realizado, a mesma merece reparos, porquanto, respeitado o trabalho da zelosa e culta Magistrada, a sentença apresenta diversas “falhas técnicas”, sob o ponto de vista técnico-jurídico, além de se mostrar desproporcional e desarrazoada.
Consigna-se que não se questiona como acima aventado, a condenação do réu pelos crimes que cometeu, tampouco a necessidade de sua apenação, decorrência lógica da primeira, mas a fundamentação dada no tocante à aplicação da pena para cada um dos crimes.
Inicialmente, pode-se citar a questão relativa às penas-base que foram fixadas no valor máximo para todos os crimes (homicídio consumado, homicídio tentado, por duas vezes, cárcere privado, por cinco vezes e disparo de arma de fogo, por quatro vezes), vez que, como é sabido, a única hipótese de se fixar a pena em grau máximo seria no caso em que todas as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal (culpabilidade, conduta social, personalidade do agente, motivos do crime, suas circunstâncias e consequências, bem como o comportamento da vítima) ou a grande maioria delas, fossem desfavoráveis ao réu, o que não ocorre no presente caso, já que pelo menos duas das circunstâncias acima mencionadas militam em seu favor, quais sejam: a conduta social, vez que se trata de pessoa trabalhadora, responsável ou pelo menos contribuinte pelo sustento da família e os antecedentes, pois Lindemberg é primário e de bons antecedentes, circunstâncias que não podem ser desconsideradas quando da dosimetria sob pena de ao se exacerbar o quantum a ser fixado, condená-lo duas vezes pelos mesmos crimes, o que seria inadmissível, além de injusto, na acepção da palavra. A fixação das penas-base na fração máxima para todos os crimes, da forma como se operou, feriu frontalmente o princípio da individualização da pena.
Menciona-se que, mesmo tendo afirmado que as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, não eram totalmente desfavoráveis ao acusado, paradoxalmente e de maneira contraditória desconsiderou tão fato, fixando as penas-base acima do mínimo legal, em patamar máximo, para cada crime. (fls. 2370) - grifei
A contradição se repete ao afirmar, ao final que, “como fundamento na primeira etapa da dosimetria da pena, as circunstâncias judiciais totalmente desfavoráveis ao réu”. (fls. 2375) - grifei
E não é só. Ao fazer uma única apreciação das circunstâncias judiciais constantes no artigo 59 do Código Penal para aferir o quantum de pena na primeira fase da dosimetria, maculou o princípio da individualização da pena, já que o réu deve receber uma reprimenda pelos delitos cometidos, na exata medida de sua culpabilidade, considerando a sua pluralidade e não todos eles como um conjunto. Assim agindo, a sentenciante negou fatores determinantes que interferem na análise das circunstâncias judiciais para elevar a pena-base acima do mínimo legal para cada um dos crimes.
Ainda quanto à fixação da pena-base relativa ao crime de homicídio tentado praticado contra o policial Atos, a exacerbação foge dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, vez que a vítima não sofreu qualquer lesão corporal. Recorda-se que referidos princípios devem nortear o Magistrado quando da aplicação da pena, a qual deve se apresentar em medida suficiente para a reprovação e prevenção da conduta. Não se pode olvidar ainda, o precípuo caráter ressocializador da pena
Pode-se citar outro deslize quando, na segunda fase da dosimetria das penas, a MMª Juíza afirmou inexistir agravantes a serem consideradas. Ressalta-se que quando o homicídio possui mais de uma qualificadora, hipótese dos autos, uma serve para qualificar o crime, outra para ser usada como circunstância negativa (judicial ou agravante). No caso, a circunstância judicial negativa foi sopesada para dosar as penas, contudo sem a devida motivação correspondente.
Além disso, destacam-se as palavras da Sentenciante quando ao considerar os motivos dos crimes para majorar a pena-base, dizendo: “os seus egoísticos e abjetos motivos (...)”, se olvidou a Magistrada de aplicar regra básica, ou seja, se os homicídios foram praticados de forma duplamente qualificada e na hipótese, menciona-se o motivo torpe no que toca a motivação dos delitos, nesse caso, a reprimenda não poderia sofrer novo aumento, sob pena de se incorrer no odioso bis in iden que, como é sabido, é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio
A comoção social bem como o sofrimento impingido à mãe da vítima Eloá, que foram consideradas, também para fundamentar a exasperação da pena-base, de sua vez, não podem ser usadas, visto que não se encaixam nas circunstâncias judiciais do mencionado artigo 59 do Código Repressivo. Tal fato é fator alheio aos crimes propriamente ditos. 
Relembra-se que circunstâncias do crime são aquelas que o tornam mais grave e que de alguma forma, repercutirão, em regra, em suas conseqüências. Na nossa sociedade, a mídia e o direito penal se interagem em relação bem próxima. Isso porque as pessoas costumam ter interesse por casos desse jaez, razão pela qual ela funciona como “olhos da sociedade”, não tendo como ficar alheia ao interesse que os crimes causam. Mas muitas vezes, ao se veicular notícia de tal porte, cria-se, de forma inerente e involuntária, a falsa realidade que foge aos reais números e aspectos da criminalidade, em especial, do caso que está sendo veiculado.
A função da mídia é sem dúvida, uma demonstração do Estado Democrático de Direito, mas que deve ser neutralizada, pelo Julgador, quando da aplicação da pena, principalmente nos casos que tratam de crimes contra a vida, já que os Jurados são pessoas leigas do universo jurídico, principalmente no que toca as regras da aplicação de pena, matéria afeta ao Juiz Presidente da Sessão Plenária de Julgamento. 
O mesmo se diga quanto ao sofrimento impingido à mãe e parentes das vítimas, principalmente a de Eloá, como mencionado pela Magistrada, vez que vida é sempre vida, a dor e o desequilíbrio causado em decorrência dos delitos praticados pelo réu não é fator que por si só, enseja aumento da pena, já que não pode ser considerado como circunstância desfavorável do crime, em desfavor do sentenciado. Diferente seria na hipótese em que o crime fosse cometido contra arrimo de família ou contra os pais de vítimas menores que, no caso, não teriam como sobreviver dignamente ao lado de sua família, em termos de sustento, educação etc. Nesses casos, as consequências dos crimes seriam gravíssimas para os menores, circunstância em que deveria ser considerada para majorar a pena-base.
(...)
Superada a questão da fixação das penas-base, assim como a segunda fase da dosimetria, merece reparo a respeitável sentença quanto à aplicação do concurso material de crimes, considerado pela MMª Juíza, sob o fundamento de que o acusado, ao praticar os delitos, assim o fez com desígnios autônomos, ou seja, com intenção individual de praticar cada um dos delitos a ele imputados, o que não me parece ser o caso dos autos. Ao contrário, na hipótese, deve-se aplicar a continuidade delitiva, com base no artigo 71 do Código Penal, já que os crimes foram praticados em um mesmo contexto fático, em iguais circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução e em um curto espaço de tempo (no caso, menos de 05 dias). Dessa forma, ficam também afastado o reconhecimento de concurso formal de crimes ou crime único, para qualquer dos delitos, requeridos pela Defensoria.
Igualmente no que toca aos delitos de cárcere privado, já compuseram a série de quesitos, os quais foram amplamente analisados, discutidos e confirmados em sua ocorrência, devendo ser considerados, de igual forma, em continuidade delitiva, com o mesmo fundamento acima aventado. O mesmo ocorreu para os crimes de disparo de arma de fogo (quatro tiros), regra contida no artigo 15 do Estatuto do Desarmamento, mas que deve ser reconhecida a continuidade delitiva para esses crimes, vez que os requisitos constantes no artigo 71 do Código Penal estão igualmente preenchidos.
Derradeiramente, ad argumentandum, inoportuna a determinação da Magistrada para que os autos fossem remetidos ao Ministério Público, a fim de que fossem tomadas eventuais providências cabíveis quanto ao fato da Sentenciante ter se sentido violada em sua honra, no caso, por parte da Defesa.
Destaca-se, inicialmente que apesar de não compactuar com alguns dos métodos utilizados nos debates, em Plenária do Júri, é sabido que no calor da discussão, que por sua natureza dialética, frequentemente, acaba por gerar situações em que as partes lançam mão de argumentos ásperos, até mesmo ofensivos, muitas vezes até “afrontosos”, o que pode ser tecnicamente tolerado. 
Justamente visando possibilitar que os representantes técnicos das partes possam assumir suas funções de forma a expressar suas convicções, o legislador prevê a imunidade profissional do Advogado, afastando a tipicidade penal da injúria, difamação eventualmente originada por "ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador", o que não afasta, diga-se, a possibilidade de punição administrativa por parte do órgão responsável, no caso, o Conselho de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil. (itálico, negrito e grifo nossos)

Com efeito, como defendido alhures no citado texto, caminho não restava ao TJ paulista que não a redução da exorbitante e injusta aplicação da pena perpetrada contra Lindemberg Alves. Neste ponto, parabéns aos Desembargadores que fizeram prevalecer diversos princípios constitucionais, tais como o da individualização da pena, proporcionalidade, razoabilidade, bem como o sistema trifásico de dosimetria da pena (art.68, Código Penal).



Apelação nº 9000016-07-2008-8.26.0554 (acórdão que reduziu a pena de Lindemberg)

domingo, 7 de abril de 2013

STJ nega pedido de progressão de regime a SUZANE VON RICHTHOFEN

No dia 01.04.2013, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça não conheceu o Habeas Corpus (link abaixo) impetrado pela defesa de Suzane Louise Von Richthofen (que fora condenada a 39 anos de reclusão pela morte de seus pais em 2002), a qual pleiteava a progressão para o regime semi-aberto. Insta salientar que Suzane está presa desde novembro de 2002.
Da análise do voto do Relator, Min. Og Fernandes, observa-se que o fundamento principal para a negativa do pedido de progressão de Suzane foi a valoração do Exame Criminológico, o qual reputou que Suzane NÃO mereceria a progressão para o regime semi-aberto. Nesta esteira, confira trecho do voto em que o Min. relator transcreve parte da decisão do Juízo de Execução que negou o pleito de progressão, in verbis:

Submetida a exame criminológico constatou-se que, notadamente na avaliação psicológica, que Suzane (...) apresentou dificuldade em articular seus conteúdos psicológicos, colocando-se então em postura defensiva, com utilização de procedimentos primitivos e pouco elaborados. Também restou anotado na Súmula Psicológica que Suzane tende a desvalorizar o outro, estabelecendo relações de forma a atender exclusivamente às suas demandas pessoais e atribuindo pouca  importância ao ser humano. Some-se a isso forte característica narcisista e facilidade em perder o controle emocional diante de situações que geram desconforto pessoal.
(...)
Evidente que se preparou para impressionar e nesse propósito conseguiu até se emocionar e chorar em momentos oportunos.

Por fim, confira a informação constante do site do STJ** sobre o tema:

Sexta Turma nega habeas corpus em favor de Suzane Louise Von Richthofen
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou pedido de habeas corpus impetrado em favor de Suzane Louise Von Richthofen, condenada a 39 anos de reclusão por colaborar na morte dos pais, Marisia e Manfred Albert Von Richthofen, em 31 de outubro de 2002.

A ré está presa desde 8 de novembro de 2002. O pedido de progressão para o regime semiaberto foi indeferido em outubro de 2009 pela 1ª Vara das Execuções Criminais de Taubaté (SP), decisão mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). No habeas corpus, o TJSP foi apontado como autoridade coatora.

A defesa sustenta que Suzane preenche os requisitos previstos pelo artigo 112 da Lei de Execução Penal, pois tem bom comportamento e está apta para o processo de ressocialização. Entre os fundamentos do pedido, questionou a necessidade do exame criminológico em que a Justiça paulista se baseou para negar a progressão.

Exame criminológico 
O relator do pedido, ministro Og Fernandes, observou que a Lei de Execução Penal não traz mais a exigência de exame criminológico para a progressão do condenado, mas a jurisprudência do STJ admite, excepcionalmente, a realização de tal exame, em virtude das peculiaridades do caso e desde que por ordem judicial fundamentada.

Segundo o ministro, nada impede que o magistrado se valha dos elementos contidos no laudo criminológico para formar sua convicção sobre o pedido de progressão de regime.

“As instâncias ordinárias indeferiram o benefício da progressão de regime à paciente com amparo em dados concretos, colhidos de pareceres técnicos exarados por psicólogos e assistentes sociais”, afirmou o relator.

De acordo com o ministro, não há como avaliar requisito subjetivo na via do habeas corpus, especialmente quando o juiz de primeiro grau, mais próximo à realidade dos fatos, concluiu que a ré ainda não está apta a retornar ao convívio em sociedade.

“A análise acerca da necessidade da realização do exame criminológico e, por conseguinte, de sua valoração para aferir o requisito subjetivo, demandaria necessariamente a incursão no conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado na via eleita”, concluiu o relator. 




Diferença entre o popular "dar queixa" e a Queixa-Crime

É muito comum ouvirmos alguém dizer - principalmente quando esta pessoa é vítima de algum crime - que irá "dar queixa" na Delegacia. Todavia, cabe destacar que esta expressão - "queixa" - não é usada corretamente pela maioria da população brasileira, tecnicamente (juridicamente) falando. Senão vejamos.
A queixa-crime, juridicamente falando, é o nome da peça processual que dá inicio ao processo penal nos crimes de ação penal privada. Em outras palavras, a queixa é a petição inicial que somente será apresentada pelo advogado da pessoa ofendida quando tratar-se de crime cuja ação penal é privada, isto é, cuja persecução penal sempre dependerá de iniciativa da vítima (ofendido). Por exemplo, podemos citar o crime de dano qualificado  pelo motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima (art.163, IV, do Código Penal). Reza o art.167 do CP que o dano qualificado por motivo egoístico somente se procede mediante queixa, ou seja, a ação penal somente terá inicio se o ofendido oferecer a queixa-crime.
Assim sendo, a vítima do crime de dano qualificado por motivo egoístico deverá contratar um advogado (ou se valer de um Defensor Público) e apresentar a chamada queixa-crime, que é a petição inaugural nos crimes de ação penal privada. 
Nos crimes de ação penal pública (seja pública condicionada ou incondicionada), a ação penal é de iniciativa de Órgão Oficial do Estado (art.129, I, da Constituição Federal de 1988), isto é, do Ministério Público, o qual inicia a ação penal por meio da peça inaugural chamada de denúncia.
Pois, bem. Nos casos de ação penal privada, o ofendido tem ainda que obedecer ao período temporal de 6 (seis) meses a contar de seu conhecimento sobre a autoria do crime para oferecer a queixa-crime, sob pena de perder seu direito de ver processado seu ofensor, diante da ocorrência de decadência, conforme previsão encartada no art.38 do nosso Código de Processo Penal.
Ademais, a chamada " dar queixa" usada popularmente se refere ao chamado boletim de ocorrência policial, mediante o qual a pessoa ofendida informa ao delegado de polícia a ocorrência do crime para que a polícia realize a apuração da autoria e da materialidade do crime. Ademais, sua previsão legal está no art.5º, §3º do CPP: "Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito".
Desta forma, vê-se claramente que a famosa "dar queixa" se refere apenas ao ato de alguém informar (boletim de ocorrência ou também conhecido como notitia criminis) à autoridade policial sobre a ocorrência de uma infração penal, onde caberá à polícia instaurar inquérito policial para apurar quem foi o autor (autoria) e se o delito realmente ocorreu (materialidade).
Para se ter em mente a importância da distinção entre o oferecimento de boletim de ocorrência (o famoso "dar queixa") e queixa-crime, basta visualizarmos o exemplo de alguém que é vítima do supracitado crime de dano qualificado pelo considerável prejuízo para a vítima (art.163, IV do CP), o qual se procede mediante queixa-crime. Como já nos referimos, a vítima tem o prazo decadencial (que não se interrompe nem se suspende, vez que se trata de prazo penal) de 6 (seis) meses a contar de seu conhecimento de quem seja o autor do crime. Supondo que esta pessoa saiba da autoria do crime no dia 07.04.2013 e resolva "dar queixa" para a polícia no mesmo dia, contudo, por falta de informação, constitua advogado somente em 01.11.2013 para oferecer queixa-crime, infelizmente terá ocorrido decadência de seu direito, ou seja, ele não poderá mais processar seu ofensor por já ter ultrapassado o prazo decadencial de 6 (seis) meses a contar do conhecimento da autoria do delito.
No exemplo acima, ante a diferença existente entre "dar queixa" (boletim de ocorrência) e a queixa-crime (peça processual que inaugura a ação penal privada), a vítima do crime de dano qualificado teria até o dia 06.10.2013 para oferecer sua queixa-crime (peça processual). Contudo, como pensava que bastava "dar queixa" na polícia, NÃO poderá mais processar criminalmente seu ofensor. Para que não haja dúvidas, somente o oferecimento de queixa-crime interrompe o prazo decadencial de 6 (seis) meses, evitando a decadência, ou seja, a simples notícia do crime para a polícia ("dar queixa") não possui tal efeito.
Já a queixa-crime, como dito alhures, é a peça inaugural (processual) das ações penais privadas, isto é, nas ações em que a persecução penal somente se inicia mediante interesse da vítima, como por exemplo no dano qualificado por motivo egoístico, calúnia, difamação, etc. 
Em outras palavras, nas ações penais privadas, o processo criminal somente se inicia mediante o interesse do ofendido em ver processado o infrator da lei penal, o qual se exterioriza com o oferecimento da peça processual chamada de queixa-crime, a qual deve possuir todos os requisitos constantes no art.41 do CPP ("A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas").
Como dito acima, importante se faz a diferenciação enter o "dar queixa" e a queixa-crime, para que se evite a ocorrência de decadência, o que deixará o ofensor impune. Como diz o ditado jurídico "Dormientibus non sucurrit jus" (O Direito não socorre os que dormem).

sexta-feira, 15 de março de 2013

CASO MÉRCIA NAKASHIMA: A pena de MIZAEL BISPO deveria ser de aproximadamente 27 (vinte e sete) anos de reclusão

No dia 14 de março de 2013 (quinta-feira), o advogado Mizael Bispo de Souza fora condenado pelo Tribunal do Júri da Comarca de Guarulhos (SP) à pena de 20 (vinte) anos de reclusão pelo homicídio triplamente qualificado (motivo torpe; meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima) pela morte da sua ex-namorada, a advogada Drª. Mércia Nakashima, ocorrida em 23 de maio de 2010.
Ocorre que, da análise da referida sentença condenatória (link abaixo), verifica-se a existência de 3 (três) erros técnicos-jurídicos, senão vejamos.
O primeiro se refere ao fato do douto magistrado ter considerado como circunstância judicial desfavorável ao réu as consequências do crime, in verbis:

"In casu", fora graves, pois a vida de uma jovem de 28 anos foi ceifada subitamente, provocando danos psicológicos incomensuráveis e irreparáveis aos familiares. O sentimento que toma conta da família em uma perda ultrajante, desumana e diabólica é intangível. A saudade inextinguível os acompanhará enquanto viverem (fls.6, sentença).

Como se sabe, as consequências do crime, especificamente no delito de homicídio têm que ser sopesadas com extrema cautela, devendo somente serem consideradas desfavoráveis ao réu quando ultrapassarem o resultado típico, o que não aconteceu no caso em epígrafe. De acordo com o renomado penalista GUILHERME DE SOUZA NUCCI, ao lecionar sobre as consequências do crime, obtempera que:

O mal causado pelo crime, que transcende o resultado típico, é a circunstância a ser considerada para a fixação da pena. É lógico que num homicídio, por exemplo, a consequência natural é a morte de alguém e, em decorrência disso, uma pessoa pode ficar viúva ou órfã. Diferentemente, um indivíduo que assassina a esposa na frente dos filhos menores, causando um trauma sem precedentes, precisa ser mais severamente apenado, pois trata-se de uma consequência não natural do delito. (Individualização da Pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.226).

Infelizmente, devido aos deletérios efeitos permanentes do homicídio (supressão da vida da vítima), é que sua pena é uma das maiores da legislação penal, vez que o homicídio simples (art.121, caput, Código Penal) possui previsão de pena entre 6 (seis) a 20 (vinte) anos de reclusão, ao passo que o homicídio qualificado (art.121, §2º, incisos I, II, III, IV e V do CP) devido à sua natureza tem pena de 12 (doze) a 30 (trinta) anos de reclusão.
Em outras palavras, somente quando as consequências do homicídio ultrapassarem o resultado típico é que será possível sopesar negativamente as consequências dele (homicídio), sob pena de dupla valoração negativa, eis que a consequência natural do homicídio que é a morte já foi valorada pelo legislador no momento da fixação das penas mínima e máxima, que, conforme dito alhures, é uma das maiores do nosso Código Penal. Destarte, no caso de Mizael Bispo, acreditamos que as consequências do crime (embora desumana e diabólica, segundo o douto juiz Leandro Jorge Bittencourt Cano) não ultrapassaram o resultado típico, ou seja, dita circunstância judicial não deveria ter sido valorada negativamente contra o réu.
O segundo deslize técnico-jurídico deveu-se ao fato do douto magistrado ter atribuído a cada circunstância judicial desfavorável o quantum de 1 (um) ano (com a exceção da personalidade a que ele fixou 2 anos). De acordo com o jurista baiano RICARDO AUGUSTO SCHMITT, ao tratar deste tema, ensina que:

Imaginar que cada circunstância judicial desfavorável tenha um valor padronizado de 6 (seis) meses, 1 (um) ano, 2 (dois) anos ou qualquer outro pré-definido pelo julgador, é ignorar em absoluto a devida proporção que deverá sempre reinar na individualização da pena.
[...]
O critério que vem sendo albergado pelos Tribunais Superiores repousa numa situação prática e simples, que tem resultado a partir da obtenção do intervalo de pena previsto em abstrato no tipo (máximo - mínimo), devendo, em seguida, ser encontrada sua oitava parte (1/8), ou seja, dividir o resultado do intervalo de pena em abstrato por 8 (oito), pois este é o número de circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal.
Com este raciocínio, chegamos ao patamar exato de valoração de cada circunstância judicial (com absoluta proporcionalidade), que servirá de parâmetro para o julgado promover a análise individualizada no momento de dosagem da pena-base. (Sentença Penal Condenatória. 7ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p.165/166).

Desta forma, considerando que o homicídio triplamente qualificado a que Mizael Bispo fora condenado possui pena abstrata de mínimo 12 (doze) anos e máximo 30 (trinta) anos, o intervalo dele é de 18 anos (30 (pena máxima) - 12 (pena mínima) = 18) e, dividindo tal intervalo (18) pelo número de 8 (oito) circunstâncias judiciais previstas no art.59 do CP, tem-se que cada uma dessas circunstâncias teriam o quantum aproximado de 2 (dois) anos 2 (meses).

Já o terceiro deslize se refere ao fato do douto magistrado ter dado à agravante da dissimulação um agravamento módico de apenas 1 (um) ano, deixando de lado entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritários no sentido de que deve ser aplicado um patamar imaginário de 1/6 (um sexto) sobre a pena-base. A esse respeito, confira novamente os ensinamentos elucidativos de RICARDO SCHMITT, que ao tratar das atenuantes e agravantes ensina que:

As circunstâncias atenuantes e agravantes formam a pena intermediária ou provisória. Portanto, seguindo o critério trifásico de dosimetria da pena (art.68 caput do CP), deverá o julgador, após ter fixado a pena-base, considerar as atenuantes e agravantes.
Como vimos, novamente não teremos critérios (pré)definidos para valorar cada circunstância atenuante ou agravante, sendo que os julgados apresentam uma diversidade de patamares, os quais passam a ser adotados por cada julgador em sua apreciação e valoração individual própria.
No entanto, muito embora não tenhamos atualmente um consenso quanto ao patamar ideal a ser adotado, torna-se mais aceito pela jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ) a aplicação do coeficiente imaginário de 1/6 (um sexto) para cada circunstância atenuante ou agravante reconhecida (e valorada) - STF HC 69392/SP, HC 69666/PR, HC 73484-7(Sentença Penal Condenatória. 7ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p.214/215). (grifo nosso)

No mesmo sentido, confira posicionamento de GUILHERME DE SOUZA NUCCI:

Temos defendido que cada agravante ou atenuante deve ser equivalente a um sexto da pena-base (menor montante fixado para as causas de aumento ou diminuição da pena), afinal, serão elas (agravantes e atenuantes) consideradas na segunda fase de aplicação da pena, necessitando ter uma aplicação efetiva. Não somos partidários da tendência de elevar a pena em quantidades totalmente aleatórias, fazendo com que o humor do juiz prepondere ora num sentido, ora noutro.
[...]
A única maneira de assegurar fiel cumprimento à elevação efetiva ou à redução eficaz da pena, na segunda fase de individualização, é a eleição de um percentual, que, como já dissemos, merece ser fixado em um sexto. Logo, tomando-se ainda como exemplo o caso da pena-base estabelecida em 15 anos, havendo uma agravante a pena passaria a 17 anos e 6 meses e não a ínfimos 15 anos e 1 mês. Na diminuição, a pena atingiria 12 anos e 6 meses e não apenas 14 anos e 11 meses. (Individualização da Pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.230/231). (negrito e grifo nossos)

Desta forma, temos que o douto Juiz-Presidente do Egrégio Tribunal do Júri da Comarca de Guarulhos, Leandro Jorge Bittencourt Cano, deveria ter dado à agravante o quantum de 1/6 (um sexto) a ser aplicado sobre a pena-base, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritários.
Assim, extirpando os 3 (três) deslizes técnicos-jurídicos do édito condenatório, isto é, valorando negativamente somente 5 circunstâncias judiciais (vez que acreditamos que as consequências do crime não são desfavoráveis ao réu, pelos motivos declinados alhures) e atribuindo-lhes o quantum de 2 (dois) anos e 2 (meses), a pena-base seria de 23 anos e 2 meses. Por fim, na segunda fase da dosimetria, em face da existência de uma agravante (e dando-lhe o quantum de 1/6 (um sexto), ante os fundamentos acima explicitados) a ser aplicado sobre a pena-base (23 anos e 2 meses), temos que a pena definitiva de MIZAEL BISPO seria de aproximadamente 27 (vinte e sete) anos e 1 (um) mês de reclusão, ou seja, não somente os 20 (vinte) anos que lhe foram fixados na sentença condenatória.




domingo, 10 de março de 2013

CASO ELIZA SAMÚDIO: A pena do goleiro Bruno deveria ter sido de aproximadamente 23 (vinte e três) anos só pelo homicídio

A condenação do goleiro Bruno pela morte de Eliza Samúdio já era esperada, ainda mais após a condenação de seu "braço direito", o Macarrão, ocorrida em novembro de 2012.
Ocorre que, da análise do referido édito condenatório (link abaixo), vislumbra-se a existência de alguns erros técnicos-jurídicos, vez que, considerando somente a fundamentação exposta (a qual, frise-se, não concordamos, conforme se demonstrará) pela douta Juíza-Presidente do Tribunal do Júri da Comarca de Contagem (MG), a sanção corporal a ser imposta ao referido atleta deveria ser bem maior que os 17 (dezessete) anos e 6 (seis) meses fixados na sentença condenatória, senão vejamos.
Inicialmente, cabe registrar, que analisaremos apenas a fundamentação do crime de homicídio triplamente qualificado (art.121, §2º, incisos I, III e IV do Código Penal brasileiro) pelo qual Bruno fora condenado, deixando de lado, assim, a análise dos crimes de Sequestro (art. 148, §1º, IV, CP) e Ocultação de Cadáver (art.211, CP).
Como é sabido, o juiz ao dosar (fixar) a pena deve se atentar para os vetores previstos no art. 59 do Código Penal brasileiro ("O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime..."), sendo que os mais comezinhos princípios sobre dosimetria da pena direcionam para que, caso todas as circunstâncias judiciais (as previstas no art.59 do CP) sejam favoráveis ao condenado, a pena-base deverá ser fixada no patamar mínimo previsto no preceito secundário do tipo penal.
A seu turno, caso as mesmas circunstâncias judiciais sejam todas desfavoráveis, a pena-base deverá ser fixada no patamar máximo. Se houver apenas uma circunstância judicial desfavorável, a pena deverá ser fixada um pouco acima do mínimo previsto na lei penal.
Ocorre que, no caso do goleiro Bruno, a douta magistrada sopesou 6 (seis) circunstâncias judiciais negativas (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, circunstâncias e consequências do crime) e mais 2 (duas) qualificadoras (do emprego de asfixia e do recurso que dificultou a defesa da vítima) para fixar a pena-base, ou seja, no total foram 8 (oito) circunstâncias negativas, mesmo número das circunstâncias previstas no art. 59 do CP. 
Como dito linhas acima, caso todas as circunstâncias judiciais sejam desfavoráveis ao réu, como foi a hipótese do goleiro Bruno, vez que ao total foram sopesadas 8 (oito) circunstâncias desfavoráveis a ele, a pena-base deveria ter sido fixada no patamar máximo (ou o mais perto disso, vez que não estamos diante de simples questão matemática) da pena do crime de Homicídio qualificado, qual seja, em 30 (trinta) anos, não nos 20 (vinte) que lhe foram impostos. Neste sentido, confira o magistério de Guilherme de Souza Nucci, in verbis:

[...] Há possibilidade legal e, em certos casos, viabilidade concreta e desejável de se estabelecer o máximo previsto no tipo penal secundário para determinados delinquentes. O raciocínio é exatamente o inverso do utilizado pelo julgador para atingir a pena mínima: se todas as circunstâncias do art. 59 apresentam-se desfavoráveis, inexiste outro caminho senão partir da pena-base estabelecida no máximo. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.341). (negrito nosso)

Em outras palavras, a pena-base aplicada a Bruno deveria ter sido de 30 anos, vez que a magistrada em sua fundamentação consignou 8 (oito) circunstâncias desfavoráveis. 
Para não haver dúvidas, cabe destacar, quando há mais de uma qualificadora, como no caso em testilha que tinham 3 (três), uma delas serve para qualificar o homicídio e as outras podem tanto ser utilizadas na análise das circunstâncias judiciais (1ª fase da fixação da pena) ou como agravantes (na 2ª fase). In casu, a juíza, acertadamente, considerou o motivo torpe para qualificar o crime e as outras duas na análise das circunstâncias judiciais. Ou seja, considerando as 6 circunstâncias judiciais negativas somadas às 2 (duas) qualificadoras, chegou-se ao número de 8 circunstâncias negativas. 
Após a fixação da pena-base, que no caso do goleiro Bruno foi fixada - equivocadamente, pensamos nós - em 20 (vinte) anos, a magistrada deveria ter neutralizado a agravante (art. 62, I do CP - quando o agente dirige a atividade dos demais agentes) com a atenuante (art.65, III, "d" do CP - quando o agente confessa a autoria do crime), ou seja, não deveria ter realizado a valoração de tais circunstâncias, eis que, por possuírem o mesmo valor (jurisprudencialmente fixado em 1/6) e a mesma natureza (subjetiva), deveriam ter sido reconhecidas na sentença, mas não aplicadas. Neste diapasão, o magistrado baiano Ricardo Augusto Schmitt leciona que:

Eis a única hipótese em que a jurisprudência admite a neutralização entre as circunstâncias, ou seja, a pena não sofrerá nenhuma alteração.
Somente ocorrerá a neutralização de uma circunstância por outra na hipótese de serem da mesma espécie, ou seja, atenuante subjetiva com agravante subjetiva ou atenuante objetiva com agravante objetiva e, ainda, desde que não estejam inseridas no art. 67 do Código Penal, caso contrário sempre haverá a preponderância de uma sobre a outra.
Muito embora pareçam sinônimos, não se trata de compensação ou anulação de uma circunstância por outra, mas sim de neutralização de seus efeitos. (Sentença Penal Condenatória. 7ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p. 239). (grifo nosso)

Desta forma, considerando a fundamentação constante da sentença condenatória (a qual equivocadamente, frise-se, considerou 8 circunstâncias negativas contra o goleiro Bruno), vislumbra-se que a pena-base deveria ter sido fixada em aproximadamente 30 (trinta) anos e que, em face neutralização dos efeitos da agravante e da atenuante supracitadas, bem como em razão da inexistência de causas especiais de aumento ou diminuição da pena, a pena-base deveria se tornar definitiva (30 anos). 
Ademais, há que se destacar, que a douta magistrada não observou o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade no que se refere ao quantum a ser dado à atenuante da confissão e da agravante, vez que, não obstante a doutrina e jurisprudência majoritárias entenderem que deve ser aplicado o montante de 1/6 (um sexto) para ambas as circunstâncias (agravante e atenuante), a juíza deu o valor de 3 (três) anos para a atenuante e de apenas 6 (seis) meses para a agravante, ou seja, faltou razoabilidade e proporcionalidade, vez que agravantes e atenuantes devem possuir o mesmo quantum, exceto quando há preponderância entre elas (como preconizado pelo art.67 do CP), o que não é a hipótese em apreço.

Contudo, consideramos que houve um erro no que tange ao reconhecimento e valoração de 3 (três) circunstâncias judiciais (antecedentes, conduta social e consequências do crime) consideradas desfavoráveis ao goleiro Bruno, senão vejamos. 
Primeiramente, a magistrada considerou como circunstância judicial negativa os antecedentes, tendo em vista que ele já havia sido condenado anteriormente. Ocorre que, segundo entendimento predominante de nossos Tribunais Superiores (STF e STJ), a existência de inquéritos e processos sem trânsito em julgado não servem para caracterizar maus antecedentes, sob pena de violação frontal à garantia constitucional da Presunção de Inocência (art.5º, LVII, CF/88 - "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"), verdadeira garantia individual. Neste sentido, recentemente o STJ sumulou a matéria em seu verbete de número 444, in verbis: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base".
Em segundo lugar, foi considerada negativa a conduta social do goleiro Bruno em face de supostas informações de que ele tinha envolvimento com o tráfico de drogas e também com a face obscura do mundo do futebol. Em primeiro lugar, insta salientar que meras suposições de participação em atividade criminosa, sem que haja prova cabal, não admite a exasperação da pena-base por má conduta social. A seu turno, se o goleiro Bruno participava de orgias (independentemente de comprovação) tal fato não deve ser considerado como fator negativo de conduta social, vez que esta se refere apenas à conduta social do réu no seio familiar, da comunidade e do trabalho, ou seja, não tem nada a ver com as festas de que participava ou de que modo eram realizadas. 
Outrossim, outro equívoco se referiu à circunstância judicial das consequências do crime que foram consideradas negativas, onde segundo a juíza, "[...] foram graves, eis que a vítima deixou órfã uma criança de apenas quatro meses de vida (fls.5)". Ora, tal fundamento não é valido para considerar negativa as consequências do crime, tendo em vista que não transcendeu o resultado típico. No crime de homicídio (Crime Rei), ante a gravidade do delito, a pena fixada abstratamente já é suficientemente alta e proporcional ao bem jurídico tutelado, ou seja, a vida. Por isso, somente quando as consequências ultrapassarem o resultado típico é que será possível considerar tal circunstância negativa, sob pena de odiável bis in iden. In casu, temos que a consequência do delito não ultrapassou o resultado típico. Neste diapasão, cabe trazer à baila mais uma vez os ensinamentos de Guilherme Nucci:

O mal causado pelo crime, que transcende o resultado típico, é a consequência a ser considerada para a fixação da pena. É lógico que num homicídio, por exemplo, a consequência natural é a morte de alguém e, em decorrência disso, uma pessoa pode ficar viúva ou órfã. Diferentemente, um indivíduo que assassina a esposa na frente dos filhos menores, causando-lhe um trauma sem precedentes, precisa ser mais severamente apenado, pois trata-se de uma consequência não natural do delito. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.226). (grifo nosso)

Desta forma, consideramos que as três circunstâncias judiciais supracitadas (antecedentes, conduta social e consequências do crime) não deveriam ter sido consideradas negativas contra o goleiro Bruno.
Assim, eliminando estas 3 (três) circunstâncias judiciais, restariam apenas 5 circunstâncias negativas (já consideradas as  2 (duas) qualificadoras acima destacadas), devendo por isso, em homenagem ao princípio constitucional da individualização da pena, a pena-base do goleiro Bruno deveria ser fixada aproximadamente em 23 (vinte e três) anos e 2 (dois) meses de reclusão.
Por seu turno, considerando que os efeitos da atenuante deveriam ser neutralizados pelos da agravante ante seu mesmo valor (1/6) e sua natureza subjetiva, bem como pela inexistência de causas especiais de aumento ou diminuição da pena, a pena definitiva do goleiro Bruno só com relação ao homicídio praticado contra Eliza Samúdio seria de aproximadamente 23 (vinte e três) anos e 2 (dois) meses de reclusão, por ser a reprimenda necessária e suficiente ao crime praticado (homicídio triplamente qualificado), não apenas os 17 (dezessete) anos e 6 (seis) meses de reclusão que lhe foram impostos na sentença condenatória.





terça-feira, 5 de março de 2013

Policial mata amigo policial por "engano": DESCRIMINANTE PUTATIVA POR ERRO DE TIPO INVENCÍVEL

No dia 18 de janeiro de 2013 (sexta-feira), na cidade de Rondonópolis (a 218 Km de Cuiabá) morreu o policial militar Yung Caio Rodrigues, de 35 (trinta e cinco) anos de idade.
Infelizmente, tal notícia causou grande comoção nacional, tendo em vista que, o responsável pela morte foi outro policial militar e grande amigo da vítima, que por "engano" plenamente justificável pelas circunstâncias, acabou atirando contra seu amigo.
Como restou apurado, o policial responsável pelos disparos estava saindo de casa na noite de quinta-feira, juntamente com sua mulher, quando Yung Caio, querendo fazer uma brincadeira com seu amigo, chegou montado em uma motocicleta e sem tirar o capacete, gritou: "perdeu, polícia, perdeu".
No calor das emoções, o amigo de Caio não pensou duas vezes e efetuou dois disparos de arma de fogo contra ele, tendo um tiro acertado o abdome e outro a virilha. Logo após os disparos, Caio, caído no chão tirou o capacete e se identificou, dizendo que era uma brincadeira.
Resumo da história, Caio foi levado urgentemente por policiais militares e por seu amigo para o hospital, mas durante a cirurgia não resistiu aos ferimentos, vindo a óbito.
Infelizmente, uma enorme fatalidade da vida, mas que também deixará consequências jurídicas.
No caso em apreço, tem-se a chamada Descriminante Putativa por Erro de Tipo, ou seja, existe uma circunstância que leva à exclusão da tipicidade, fazendo com que o agente responsável pela morte não sofra qualquer sanção penal quando o erro for inevitável (aquele que, mesmo que fosse empregada prudência mediana o resultado ocorreria). Neste diapasão, o insigne penalista, Fernando Capez, ao tratar da descriminante putativa por erro de tipo leciona que:

Ocorre quando o agente imagina situação de fato totalmente divorciada da realidade na qual está configurada a hipótese em que ele pode agir acobertado por uma causa de exclusão da ilicitude.
É um erro de tipo essencial incidente sobre elementares de um tipo permissivo. Os tipos permissivos são aqueles que permitem a realização de condutas inicialmente proibidas. Compreendem os que descrevem as causas de exclusão da ilicitude, ou tipos descriminantes. são espécies de tipo permissivo: legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular do direito e estrito cumprimento do dever legal.

E por fim, arremata que:

Ocorrerá um erro de tipo permissivo quando o agente, erroneamente, imaginar uma situação de fato totalmente diversa da realidade, em que estão presentes os requisitos de uma causa de justificação. No caso da legítima defesa, suponha-se a hipótese de um sujeito que, ao ver um estranho colocar a mão no bolso para pegar um lenço, pensa que ele vai sacar uma arma para matá-lo. Nesse caso, foi imaginada uma situação de fato, na qual estão presentes os requisitos da legítima defesa. Se fosse verdadeira, estaríamos diante de uma agressão injusta iminente. Houve, por conseguinte, um erro sobre situação descrita no tipo permissivo da legítima defesa, isto é, incidente sobre os seus elementos ou pressupostos. Daí a conclusão de que a descriminante putativa por erro de tipo é uma espécie de erro de tipo essencial. 
(...)
Os efeitos são os mesmos do erro de tipo, já que descriminante putativa por erro de tipo não é outra coisa senão erro de tipo essencial incidente sobre tipo permissivo. Assim, se o erro for evitável, o agente responderá por crime culposo, já que o dolo será excluído, da mesma forma como sucede com o erro de tipo propriamente dito; se o erro for inevitável, excluir-se-ão o dolo e a culpa e não haverá crime. (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Vol. 1, parte geral: arts. 1º a 120. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, págs. 250/251). (grifo nosso)

No fatídico episódio ocorrido em Rondonópolis (MT), ocorreu justamente a descriminante putativa por erro de tipo, vez que o policial militar responsável pelos disparos pensava estar acobertado pela legítima defesa (ante uma agressão injusta iminente, requisito da referida excludente de ilicitude), pois ao sair de casa, se viu ameaçado por um motoqueiro que gritou "perdeu, polícia, perdeu". Qualquer pessoa em sua situação acharia que seria vítima de roubo ou, em casos de policiais, executado. Basta dar uma olhada nos noticiários diários, para ver quantos policiais são vítimas de execução em todo o Brasil.
E mais, levando em consideração as circunstâncias do caso - isto é, o amigo estar de capacete e sem a farda da polícia -, acreditamos ser caso de descriminante putativa por erro de tipo invencível, o que equivale a dizer que, o erro elimina tanto o dolo quanto a culpa, eliminando o crime ou nas precisas palavras de Fernando Capez, "excluir-se-ão o dolo e a culpa e não haverá crime". Neste diapasão, nosso Código Penal prevê no art.20, §1º, "É isento de pena quem, por erro plenamente justificável pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo". (grifo nosso)
Diante o exposto, sendo reconhecida a descriminante putativa por erro de tipo invencível e a consequente eliminação da conduta dolosa e culposa, não há que se falar em responsabilização por homicídio na fatalidade ocorrida em Rondonopólis (MT), por total ausência de tipicidade (vez que, para a Teoria Finalista da Ação, a qual nosso Código Penal adotou, é preciso que haja conduta (dolosa ou culposa) para que haja tipicidade).
Como se sabe, nosso Código Penal abraça a teoria que põe como elementos do crime a tipicidade (sendo a conduta dolosa e/ou culposa um de seus elementos), ilicitude e culpabilidade, ou seja, havendo a exclusão do dolo e da culpa pela descriminante putativa por erro de tipo invencível fica eliminado o crime, em razão da ausência de um de seus elementos, qual seja, a tipicidade (vez que a referida descriminante exclui a conduta dolosa e culposa, elementos da tipicidade).